UM FILME PARA PENSAR A VIDA – Maria Emília Bottini
O cinema é uma das grandes contribuições da arte e da ciência para a humanidade. É uma forma eloquente de contar histórias e resgatar a magia dos contadores que por vezes ainda adormecem em nós. O filme japonês A Partida (Okuribito, 2008) é um belo exemplo disso. É envolvente, mesmo que o tema seja tudo aquilo que não se deseja ouvir e muito menos se preparar. Morrer é fato inquestionável, mas constantemente negado. É uma experiência única, pessoal e intransferível. Passa-se a vida escondendo a doença, a decrepitude e a decadência, especialmente da vida das crianças. As religiões quase sempre tratam o assunto de uma forma muito reduzida, semeando ideias de medo e de castigo eterno. Morre-se um pouco a cada dia. Talvez seja sábia a máxima que afirma: deve-se viver cada dia como se fosse o derradeiro.
Em 2012 fui aprovada na seleção do doutorado em Educação na Universidade de Brasília (UnB). Durante três anos debrucei-me sobre três temáticas as quais sou apaixonada: o cinema, a morte e o filme A partida. A questão norteadora deste estudo foi compreender como o recurso cinematográfico pode ser utilizado para tratar da temática da morte tendo como instrumento pedagógico no filme A partida de Yôjirô Takita (2008).
O filme A partida narra alguns episódios da vida de Daigo Kobayashi, um violoncelista frustrado da orquestra de Tóquio. Quando a orquestra encerra suas atividades por falta de público, ele e sua esposa, Mika, retornam a sua cidade natal e passam a morar na casa deixada pela mãe, que morreu há dois anos. A cidade traz para Daigo lembranças amargas, especialmente, a dor pelo abandono do pai na infância, de quem nunca mais soube.
Encontra no jornal uma oferta de emprego em uma agência de viagens. Contudo, ele constata se tratar de serviço para “viagens derradeiras”. A contragosto, aceita o emprego ritualístico de “nokanshi”, um especialista em acondicionar e purificar os mortos para a derradeira viagem. Revela-se espantosamente apto nesta arte, expressando delicadeza e respeito admiráveis. Ele esconde isto de sua mulher, Mika, por crer que é um trabalho vergonhoso e pouco aceito socialmente. Ao negar o trabalho, nega também a dificuldade de aceitação da finitude da vida. O relacionamento mal resolvido com o pai ressurge de forma decisiva ao se defrontar cotidianamente com a morte.
O filme aborda a dicotomia da sociedade japonesa que se moderniza e se ocidentaliza ao mesmo tempo em que tenta manter alguns traços da sua própria cultura. Com o passar do tempo, Daigo busca compreender a morte para além do trabalho. Contudo, sua esposa descobre e o repele por considerar um trabalho indigno. A perda da esposa o reconduz à reconciliação com a música que aprendera por insistência do pai. Junto ao violoncelo, encontra uma pedra embrulhada (pedra-mensagem). Quando criança, o pai lhe contara que antes da invenção da escrita, os antigos procuravam uma pedra que expressasse seus sentimentos e a brindavam aos seus entes queridos. Podiam, dessa forma, ler os sentimentos do outro pelo peso e textura.
A dificuldade estabelecida em vida com o pai só tem desfecho com sua morte, quando está acondicionando e purificando o corpo. Ao abrir a mão direita, encontra a pedra que ele havia dado ao pai quando criança. Compreende que ele estava em seu coração até o último momento. Era hora de perdoar as escolhas do pai perdoando-se, pois, o mistério da morte se vislumbra no coração da vida e ela é uma oportunidade aberta a todos para a necessária mudança cotidiana de rota, mesmo que seja a última da frágil condição humana.
A Partida é um fio condutor para a reflexão de um tema definitivo, mas não oferece receita pronta, cada um tem que caminhar o seu próprio caminho passo a passo, é um convite a repensar qual o sentido que damos aos parcos dias que vivemos.
Podemos educar para a morte e o morrer através do uso de filmes como proposta reflexiva, mas não sem entender que no cinema e na vida é difícil, mas ainda assim necessária.
A morte é experiência intransferível, única aos que vivem mesmo que dela nos afastemos e a neguemos até o dia em que com ela nos encontraremos e passaremos a não ter, não ser, não existir. É nossa única certeza, para mim justa e democrática pois não discrimina nem exclui ninguém, para nos lembrar que no final de toda a jornada da existência o que sobram são cinzas.
Gibran nos diz: “Quereis conhecer o segredo da morte, mas como podereis descobri-lo se não o procurardes no coração da vida?”. Viver é o melhor antídoto contra a morte, não viver é morrer em vida.
Maria Emília Bottni é Psicóloga, Professora Universitária, Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
É autora do livro: No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer, resultado das reflexões do doutorado em educação. O prefácio é de Maria Júlia Kovács.
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Para adquirir o livro: emilia.bottini@gmail.com; (61) 981165433
Comentário (1)
Clóvis, gratidão por divulgar está crônica que fala do meu livro, resultado da tese de doutorado em educação na UnB nesta página.